quando comecei a escrever essa cartinha tinha lá meus 8 meses. entre um choro e outro, lembrava de te agradecer por repetir tantas vezes que eu não te dava paz. agradecer pela sua fala risonha-nervosa diante da fralda vazada: "Sua xixi". algum tempo depois acrescentei mais uma memória carinhosa: me trancar num quarto fazendo cara de monstro. infinitos os momentos que eu pedia para você parar e nada acontecia senão você repetidamente achando graça de ter uma filha com medo de um monstro construído pela mãe.
tivemos momentos mais comuns como o dia que precisei que um presidente de casa espírita te acalmasse para que você não me batesse por ter escrito na camisa no último dia de aula, do mesmo modo que todos os meus companheiros de sala - exceto os testemunhas de Jeová. eu tinha 6 anos.
a surra por ter medo de panela de pressão; eu me jogando na cama pra apanhar espontaneamente porque meu livro de português tinha sumido; 8 anos.
enquanto sigo essa carta, minha mão estremece de emoção e castração, na tentativa de inibir lembranças que o coração insiste em conservar. mas tenho acreditado na cura pela palavra, na cuspição danada que tem sido desde a ultima quinta em que eu ouvi dele "não recolhe sua trouxinha tão rápido".
quando eu tinha 19 anos eu apanhei dormindo porque você julgou saber meu horário melhor que eu, e chamando de vadia preguiçosa eu fui despertada. achei que seria a última vez. não foi. porque sua palavra segue violenta quando você se vê mais perto da filha desconhecida ou ignorada. ofender até ficar pequenininha de novo. inibir. esconder a criação de si mesma.
estou satisfeita.